domingo, 28 de junho de 2009

a gente se acostuma, mas não devia













"Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia! A gente se acostuma a morar em apartamento dos fundos e a não ter outra vista, logo se acostuma a não olhar mais para fora, logo se acostuma a não abrir toda a cortina. E porque não abre a cortina, logo se acostuma, a acender a luz mais cedo. E logo esquece o sol, esquece o ar, a amplidão. A gente se acostuma a acordar sobressaltado porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus para não perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque já é noite. A deitar e dormir pesado, sem ter vivido o dia. A gente se acostuma a não ouvir os pássaros, a não colher as frutas no pé a não ter sequer uma planta ou um animal! A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. A gente se acostuma para não ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca. A gente se acostuma a poupar a vida, que aos poucos se gasta e que, de tanto acostumar, se perde em si mesma".

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